... preso entre a fantasia e a realidade.
Narciso era um homem de extrema beleza. Filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope, ele despertava o amor de homens e mulheres no território de Téspias, porém, não se relacionava com ninguém, visto que preferia viver só, porque ainda não havia encontrado alguém merecedor do seu amor.
Narciso caçava nas montanhas próximas ao bosque quando foi avistado pela ninfa Eco que se apaixonou perdidamente por ele e tentou chamar sua atenção. Narciso, quando, enfim, se deparou com Eco, disse que preferia morrer a se entregar a bela ninfa e fugiu. Eco, envergonhada e desolada, passou a viver em cavernas nas montanhas e evitar outros seres, de modo que, por não se alimentar mais, foi definhando cada vez mais até sua carne desaparecer e seus ossos virarem pedra, deixando viva apenas a sua voz.
Vendo o que aconteceu com Eco, Nêmesis, a deusa da vingança, decidiu punir Narciso pelo que sua arrogância provocou. Narciso, chegando com sede a um lago após uma caçada, abaixou-se para saciar-se quando se deparou com a sua bela imagem e, sem perceber que era apenas seu reflexo, se apaixonou perdidamente por ela. Tentou buscá-la com as mãos, porém toda vez que as levava às águas, a imagem desaparecia retornando logo depois. Como não conseguia tocá-la, nem a beijar, se resignou a somente olhá-la. Narciso ficou por muitos dias assim, admirando a si próprio no lago, sem dar conta de se alimentar enquanto seu corpo definhava.
Em 1909, Freud faz uma menção pública ao termo “narcisismo” na nota de rodapé do artigo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (se estendendo sobre o assunto em 1914 no artigo “Sobre a introdução do conceito de narcisismo”). Segundo Freud, haveria em cada um de nós uma fase chamada de narcisismo primário que seria precisamente a etapa em que a pessoa passaria a reconhecer que existe um “outro” (até então, no universo infantil, a criança e o mundo seriam uma coisa só).
Embora o bebê (por volta dos seis meses) não tenha ainda condições fisiológicas de desenvolver mecanismos complexos que separem o que é ele e o que são as demais coisas do mundo, a imagem de si é “desenhada” através do exterior. Lacan, psicanalista francês, propôs que existem três fases no narcisismo e coloca que elas constituem o “estágio do espelho”. Esse estágio pode ser interpretado como uma identificação que decorre da relação de uma criança com a sua imagem. Elas se dariam da seguinte forma:
No primeiro momento, a criança se enxergaria no espelho e entenderia que o que ali aparece seria outra criança e não ela mesma. Ela acena, e a outra criança também acena, ela sorri e assim a outra a sorri.
Então, em um segundo momento, a criança já não tem tanta certeza de quem acena pra quem ou quem observa quem. É ela quem observa a criança do outro lado do vidro ou é a outra criança que a observa? Instaurando assim uma espécie de reciprocidade e desorientação do Eu. Aqui a criança confunde-se um pouco com a imagem apresentada e não sabe se aquela imagem é outra pessoa ou ela mesma.
No terceiro e último momento, o Eu surge com o reconhecer de que aquela imagem simboliza o próprio Eu da criança. Há uma certa integração desses dois “Eus” pra formar um só “Eu”, ainda composto pelos dois. (Sabe aquele momento em que nós conversamos com nós mesmos quando estamos prestes a dormir? Essa é uma espécie de experiência desse encontro dos dois Eus).
O narcisista é reconhecido, no senso comum, como aquele que só pensa em si ou acredita que tudo que acontece se dá por causa dele. Qualquer decisão tomada por outra pessoa, invariavelmente foi baseada para lhe atacar, agradar ou algo do gênero (o que dificulta muito uma conversa com essa pessoa). Usar esse conceito para determinar um tipo de pessoa não é completamente errado visto que, como vimos, passamos por uma fase assim, quando criança, que não reconhecemos que existe um outro. O problema está justamente quando a pessoa, por motivos não necessariamente conscientes, apresentam fortes resquícios dessa fase ou não conseguem elaborá-la da forma que se espera no desenvolvimento psíquico.
Segundo o discurso psiquiátrico, pessoas narcisistas apresentam fantasias irreais de sucesso, hipersensibilidade à avaliação dos outros, esperam ser tratadas de forma especial, tem alta necessidade de atenção, sentem-se superiores e tendem a avaliar suas habilidades de forma exagerada. Também é comum que, quando não se sentem reconhecidas, passam a se sentir humilhadas e agem com desdém ou “contra-atacam” aquele que não o atacou.
As relações interpessoais com essas pessoas são muitas vezes penosas e levam sofrimento tanto ao narcisista como ao seu parceiro. Não reconhecer esse perfil em uma pessoa, pode fazer com que você entre em uma relação abusiva ou se sinta inferior em muitos casos.
Isso também gera impasses na própria clínica visto que o psicanalista, na condição clínica, não está lá para agradar o analisando (pessoa que se submete a um processo psicanalítico), mas para apontar no discurso da própria pessoa algo que ela mesma não enxerga e que normalmente é algo que dói ou lhe causa vergonha. O papel do analista é o de auxiliar o cliente a trazer a tona aquilo que ele não consegue lidar e, por isso, vem sendo renegado (também não de forma consciente) há muito tempo. Apesar de esses ser um contexto que desafia a prática clínica, é indicado que o narcisista procure análise, pois, como já foi dito, o sofrimento é uma constante quando suas fantasias não são reafirmadas pela realidade.
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